Entorno da Granja Comary recebe "maquiagem" para encobrir rastros da tragédia


CBF investe milhões para garantir conforto de jogadores e população sofre com descaso do governo

Jornal do Brasil
Cláudia Freitas

Uma ampla reforma que durou dez meses e com investimento na ordem de R$ 15 milhões, a Granja Comary, Centro de Treinamento da Confederação Brasileira de Futebol (CT/CBF), em Teresópolis, Região Serrana do Rio de Janeiro, ganhou uma infraestrutura luxuosa para receber a seleção brasileira durante a Copa do Mundo. A reinauguração do CT, no mês passado, foi o primeiro passo para preparar a cidade que estará na rota de visitação dos turistas e da imprensa mundial. No entanto, Teresópolis ainda possui marcas da tragédia dos temporais que destruíram bairros inteiros em 2011. Nos últimos três anos, a população reclama do abandono das autoridades e nem os imóveis destinados aos desabrigados das enchentes foram entregues até o momento pelo poder público.



Na quarta-feira passada (2/4), a prefeitura de Teresópolis iniciou o projeto de revitalização da cidade em torno da Copa. Uma das principais rua do Centro, a Delfim Moreira, começou a receber obras de recapeamento, interditando 1,3 quilômetro da via e provocando alterações no trânsito. Em seguida, as ruas Duque de Caxias e Alice Quintela Regadas serão recuperadas. Cerca de 70 caminhões de asfalto serão utilizados nas obras. “O asfaltamento vai permitir que a cidade receba melhor a Seleção Brasileira e os turistas, mas vai beneficiar principalmente a população”, garante o prefeito Arlei Rosa (PMDB). As mudanças começaram após a cerimônia de reinauguração da Granja, que teve a participação do prefeito descerrando a placa, ao lado do presidente da CBF, José Maria Marin, e do vice-presidente da Confederação, Marco Polo Del Nero.


Partindo do luxuoso entorno da Granja Comary e do Centro da cidade rumo à periferia, o cenário é desolador e ainda relembra as enchentes e desabamentos ocorridos na madrugada de 12 de janeiro de 2011, que resultou em 392 mortos confirmados, 180 desaparecidos em 80 comunidades atingidas, 49 mil pessoas afetadas e 3.287 residências interditadas. De lá até os dias atuais, quase nada mudou e a população acusa a prefeitura e o governo do Estado de negligenciar ajuda àqueles que perderam seus bens e familiares. Bairros como o da Posse e Campo Grande, que praticamente ficaram soterrados com a avalanche de pedras e lama que desceram da serra, agora têm o aspecto de uma cidade fantasma habitada por pouco sobreviventes, que alimentam a esperança de receber as casas populares prometidas pelo governo estadual, através do projeto Minha Casa Minha Vida.

A luta por uma nova vida e justiça social

"Os agentes da prefeitura interditaram os nossos imóveis, porque eles dizem que a casa oferece perigo de desabamento, mas eles também nos prometeram um novo imóvel próprio, através da compra assistida. Só que a gente apresenta várias residências dentro do perfil que eles exigem, mas nunca a compra é liberada. Eu mesmo já tentei negociar uns 20 imóveis e a prefeitura não autoriza. Quando vamos tentar um diálogo com o prefeito, ele nem sequer nos atende", afirma o morador Valdeli Correa, de 46 anos.

Nascido no bairro de Campo Grande, Valdeli perdeu 20 membros da sua família na tragédia de 2011 e só conseguiu se salvar porque subiu no telhado da sua casa. "Quando eu escutei aquele barulhão, chamei a minha mãe e meus irmãos para subir ao telhado, mas eles acharam que a casa não ia imundar. Lá de cima eu e a minha mulher vimos todos eles irem embora. Até hoje eu não encontrei o corpo do meu irmão e do meu tio", conta ele emocionado. Atualmente, Valdeli sofre de depressão e luta para se manter com um aluguel social no valor de R$ 500,00 e os trabalhos de jardinagem que realiza no bairro vizinho. "Eu e a minha mulher estamos morando de favor na casa da minha cunhada. Tudo mudou depois das chuvas", diz ele.

                                      Valdeli Correa ainda sonha com a sua casa popular

Segundo Valdeli, a prefeitura está exigindo dos desabrigados uma foto do imóvel antes dos desabamentos como condição para inscrição no programa Minha Casa Minha Vida. "Eu perdi todos os meus pertences, foi tudo embora nas águas, só fiquei com a roupa do corpo. Será que esse governo não entende isso?", reclamou ele.

O jardineiro Ronaldo Pimentel Cunha, de 43 anos, enfrenta o mesmo problema e está tentando até hoje legalizar a sua situação cadastral com a prefeitura para receber o seu novo imóvel. Morador do bairro Ricão do Vovô, Ronaldo perdeu 20 pessoas da sua família durante a avalanche e conseguiu sobreviver fugindo para uma rua na parte alta de localidade. "No caminho eu encontrei um casal de idosos que me pediram ajuda para sair de uma casa imundada. Eu consegui salvá-los e isso me deixo mais aliviado. Pena que não consegui fazer o mesmo pelos meus familiares", conta ele.

Solidariedade é o sentimento que ainda uni a população que sobrevive à catástrofe nos últimos três anos. O morador do bairro da Posse, Joel Barbosa, de 50 anos, ajudou nos regastes das vítimas e agora critica a morosidade e descaso do poder público local. "Os meus amigos e vizinhos que perderam tudo continuam na miséria, porque a prefeitura só promete e não cumpri nada. As pessoas precisam do aluguel social e de seu imóvel para recomeçar a vida, mas tá difícil o governo ajudar a cidade se reerguer. O nosso bairro, por exemplo, acabou. Ninguém mais se mudou para cá e os sobreviventes são poucos e vivem com muitas dificuldades. O asfalto até hoje não foi recolocado e as marcas da tragédia estão aí por todos os lados para nos lembrar do que aconteceu", conta o morador.

Joel Barbosa ajudou no resgate das vítimas e agora reclama do descaso do governo

Joel viu a avalanche de pedras e lama passar a poucos metros da sua casa, que fica num ponto mais alto do bairro da Posse. "Eu estava com a minha filha em casa e fiquei daqui do quintal olhando aquela forte correnteza passar bem pertinho de mim. Não dava para correr, era esperar algo acontecer. Escutava as pessoas nas outras casas me pedindo socorro. Mas o que eu podia fazer? De repente as casas começaram a desabar e ir naquela correnteza abaixo. Não vou esquecer nunca mais", relembra o morador.

Entidade aponta para erros no cadastro dos desabrigados e fragilidade no projeto habitacional

Um levantamento feito pela Associação das Vítimas das Chuvas de Teresópolis (Avit), criada com a finalidade de defender os direitos dos desabrigados, revela que muitos moradores ainda não conseguiram se cadastrar para receber o aluguel social e também para o programa de habitação oferecido pela prefeitura. "Em 2011, a equipe que integrava a Secretaria Municipal de Habitação cometeu uma série de erros no cadastramento dos desabrigados e usou a máquina do governo para fazer campanha eleitoreira. Muita gente que não precisa do benefício foi credenciado e tomou o lugar de famílias que perderam tudo. Essa questão precisa ser revista pela prefeitura, para não deixar de fora quem realmente precisa", contou um dos coordenadores da entidade, Joel Caldeira.

Obras das casas populares na Fazenda Ermitage ainda está na preparação do terreno

Com relação ao programa habitacional que garante moradia para os desabrigados, de acordo com Caldeira a prefeitura está prometendo 1600 casas populares que devem ser entregues até meados deste ano, num condomínio que está sendo erguido na Fazenda Ermitage, às margens da BR-116 (Estrada Rio-Bahia). "Esse número de imóveis não bate com a quantidade de pessoas que recebem aluguel social, que é de 2.700. Ou seja, demonstra um erro que deve ser corrigido antes da inauguração das unidades habitacionais", alerta Caldeira.

O membro da Avit ainda destaca outra falha do governo no projeto de construção das casas populares. "Eles não fizeram uma passarela para os moradores, sendo que o condomínio fica em uma via expressa e muito perigosa. Não podemos deixar a prefeitura inaugurar essa obra sem o viaduto, senão vamos presenciar mais uma tragédia", afirmou Caldeira. Atualmente, a Avit tem 700 ações cadastradas para recorrer na Justiça para recebimento do aluguel social.

Denúncia de moradores revela que ossadas são ocultadas em escavações

A prefeitura de Teresópolis tem feito nos últimos anos escavações e remoções de destroços em um dos condomínios mais afetados pelas chuvas na região, A Fazenda da Paz, localizado no bairro da Posse. Segundo moradores da região, que pediram para não ter as suas identidades reveladas na reportagem, várias ossadas humanas foram encontradas durante as escavações e jogadas em um rio que atravessa o bairro.

                                        Escavações na Fazenda da Paz, no bairro da Posse

"Eles encontraram ossos de adultos e crianças, mas jogaram todo o material no rio. Nem chegaram chamar a Defesa Civil. Escutamos dos funcionários que eles estavam fazendo isso para não interferir na contagem de pessoas mortas na tragédia. Muitos fatos estão sendo jogados para debaixo do tapete, para aliviar a barra da prefeitura", contou uma moradora.

Ainda na Fazenda da Paz, o vigia Elias do Carmo Araújo, de 49 anos, contou que muitos amigos dele desapareceram após as enchentes e nunca tiveram os seus corpos encontrados. Ele mesmo perdeu uma sobrinha e a sua cunhada, além da sua casa que foi desapropriada. "Agora estou vivendo de favor na casa de familiares e com um aluguel social de R$ 500,00. Eu recusei a indenização de R$ 10 mil que a prefeitura ofereceu pelo meu imóvel e agora estou na esperança de receber a minha casa popular", disse o vigia.

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